Sobre
hubris, Éris, Nêmesis e Moiras
ou
como o orgulho pode ser ruim
por Marco Antonio H. de Menezes
Entoa o coro grego a parte que lhe cabe neste
latifúndio!!
Era uma vez um ser (alguns dizem que era um
daimon, outros que era uma deusa, mas deixemos isto para os estudiosos e
prossigamos com a nossa história) chamado Éris. Éris estava muito chateada
porque não havia sido convidada para o casamento de Peleu e Tétis. Todo o
Olimpo havia sido convidado e ela não. Por quê? Só porque ela sempre dá um
jeito de gerar uma discussão, uma discórdia? Pois bem, ela chegou no momento
mais brilhante da festa e botou banca cantarolando: “Não me convidaram pra essa
festa pobre que os deuses armaram pra me convencer a pagar sem ver toda essa
droga que já vem malhada antes de eu nascer”. Claro que ela chamou a atenção e
deixou a todos sem graça. Aí, sem cerimônia, ela afastou o bolo dedicado aos
recém-casados e colocou sobre a mesa uma maça dourada, o pomo da discórdia. Na
maçã havia uma inscrição: kallisti ou “à mais bela”. Isto causou um burburinho.
A qual deusa ela estava se referindo: Atena, Afrodite ou Hera? A decisão
ficaria, segundo a vontade expressa do grande deus Zeus, por conta de Príamo, o
rei de Tróia, mas como ele já estava velho demais (e não queria se indispor com
as três deusas), ele preferiu conceder a Páris, seu filho, tal empreitada. E aí
a corrupção rolou solta na festa de casamento que agora virava uma espécie de
Domingão do Faustão para saber como Páris iria se virar para se decidir. Atena
prometeu que o tornaria uma pessoa hábil para batalhas e com sabedoria inigualável.
Hera prometeu conceder a ele grande poder político e o poder de ser o rei mais
forte de todos os tempos. Coube a Afrodite prometer a mais bela de todas as
mulheres: Helena, que, por um acaso, era casada com Menelau, o rei de Esparta.
Bem, Páris, que era um cara muito simplório, afinal, apesar de ser príncipe e filho
do rei de Tróia, era pastor de um rebanho. Ele coçou a cabeça, olhou para
todos, não havia estudantes para ele consultar e nem amigos para quem
perguntar. Todos fizeram aquele ar de “o problema é teu, meu amigo? Se vira nos
30!”. Bem, a decisão dele foi pela oferta de Afrodite a quem ele concedeu o
pomo de ouro de a mais bela. Bem, o resto é lenda de guerra. Mas para quem
chegou atrasado: Páris escolheu Afrodite como a mais bela e ela ganhou o pomo
de ouro ou pomo da discórdia oferecido por Éris como troco por não ter sido
convidada para o casamento entre Peleu e Tétis (um casamento que dizem ter sido
arranjado, mas aí deixo as fofocas para as àgoras gregas). Enciumadas pela
escolha de Páris, as duas deusas vencidas, Hera e Atena, decidem jogar os
gregos contra Tróia por conta do rapto de Helena, casada com o rei espartano Menelau,
por Páris. Todo mundo já sabe, graças às àgoras gregas, que Tróia foi derrotada
graças a um cavalo de madeira infiltrado no coração dos orgulhosos troianos,
que se achavam invencíveis, apesar dos apelos de Cassandra, que vivia
consultando os deuses mais politizados da época.
Vocês pensam que esta é só uma história que
tem como grande protagonista a simpática Éris?
Não é bem assim! É fato que Éris gerou a
discórdia, dividindo o povo entre os que defendiam as mortadelas e os que
defendiam as coxinhas. Mas há muito mais por trás desta deliciosa história.
Corria o ano de 2016 e no simpático dia 21 de
abril daquele ano, às 6:53, horário de Brasília, era acesa em Olímpia (Grécia)
a tocha olímpica que iria percorrer várias cidades até chegar ao Rio de
Janeiro, onde ocorreriam os Jogos Olímpicos daquele ano. No mesmo dia, na muy heroica
e gloriosa cidade do Rio de Janeiro, por volta de 11:10 da manhã, duas pessoas
morrem enquanto passeavam pela ciclovia Tim Maia, recém-inaugurada. A ciclovia
desabou! Naquele dia eu tive o pressentimento de que a deusa Nêmesis estava começando
a chegar ao país ou estava começando a atuar no país.
Nêmesis era uma daquelas deusas que dizem que
era irmã de Éris, por parte de Nyx, mas há quem diga que não é bem assim. E se
há controvérsias, pode haver discórdia e pode gerar vingança. Se Éris semeia
discórdia, Nêmesis é a geradora da vingança. Mas vamos explicar bem esta história.
Para os gregos, Nêmesis era o nome de uma deusa que vivia no Olimpo e que se
assemelhava a muitas das deusas ali existentes, mas o seu papel era de trazer a
vingança divina. Uma vingança que visava equilibrar excessos. Ela trazia
felicidade ou tristeza conforme o momento. Ela foi responsável pela vitória dos
gregos contra os persas. Ela foi responsável pelo castigo a Narciso por ele se
achar o “lindão” da vez. Nêmesis aparece sempre para equilibrar o excesso de
felicidade, o orgulho e a vaidade excessiva, por exemplo. Ela é considerada a
inevitável. Demore o tempo que for, Nêmesis aparecerá para, segundo os gregos,
nivelar tudo o que ultrapassou os limites, geralmente ela desencadeia uma
situação que parecerá uma vingança aos olhos de quem está no meio da trama.
Existe um ponto em que a história de Nêmesis e Éris se encontram: Tróia. Um
dia, Zeus, o poderoso chefão de todos os deuses do Olimpo, encantou-se por
Nêmesis. Nêmesis resolveu tentar escapar do tarado deus transformando-se numa
gansa, mas Zeus, imediatamente, transformou-se num cisne e fez a festa! Desta
união nasceu um ovo, que foi abandonado por Nêmesis e que foi achado por
pastores que entregaram a Leda que havia transado com Zeus (ele traçava o
condomínio inteiro, talvez mais do que o filho de uns e outros!). Leda já
possuía dois ovos (sim, a rainha de Esparta tinha sido fecundada por Zeus na
forma de cisne), mas sempre cabe mais um no coração de uma mãe e então ela
cuidou de mais aquele ovo. Pois bem, daquele ovo nasceu Helena, que viria a ser
a esposa de Menelau, que seria raptada por Páris e que desencadearia a guerra responsável
pela destruição da orgulhosa Tróia. Nêmesis e Éris fizeram as suas partes nesta
história. Nêmesis executou uma vingança divina que atingiria Tróia (a cidade
que se considerava invencível), graças ao pomo da discórdia trazido por Éris.
Juntas, as duas deram vez às Moiras, as senhoras do destino.
Éris, Nêmesis e as Moiras atuaram, no caso de
Tróia, como agentes relacionadas a um problema maior: húbris ou hybris.
Húbris é o nome grego (eles são danados,
né?!) para tudo o que passa dos limites, do equilíbrio. É um termo associado ao
orgulho, à vaidade, à confiança que passaram a ser excessivos. Pense na arrogância,
numa pessoa presunçosa e/ou insolente. Sabe aquela pessoa “que se acha”? Pois é!
Pela visão dos gregos, seria aquela pessoa que se acha maior do que os deuses,
que não sabe baixar a bola, que “anda de salto alto” o tempo todo. Toda pessoa
que perdeu a noção dos limites acaba sendo, de alguma maneira, atingida pelos
deuses por húbris. A pessoa perde o controle dos impulsos, perde a noção dos
limites, não respeita o espaço alheio, deixa que as paixões (quaisquer que
sejam) atinjam níveis violentos. Dizem que os deuses, quando viam alguém
ofendendo-os com os seus excessos, condenavam a pessoa à loucura. Húbris é um
descaso de uma pessoa por quem quer que seja (seres humanos, deuses e tudo o
que o rodeia), pois ela acredita que pode fazer o que bem quiser, sem medir
consequências. Húbris acomete a todos os que querem mais do que o destino
(representado pelas Moiras) lhes concede. Os deuses usariam da vingança divina
(Nêmesis) como forma de fazer com que as pessoas acometidas por húbris
voltassem ao equilíbrio.
Há outra deusa chamada Ate ou Até, que é responsável
por chamar a atenção dos indivíduos que ultrapassavam os limites. Ela era
representada por uma ave que pousava sobre a cabeça das pessoas alertando-as de
que haviam perdido a razão, de que estavam se deixando levar pelo orgulho
desmedido ou por algum excesso que lhes custaria caro. Assim, quando uma pessoa
começava a expressar húbris, Nêmesis era ativada por conta do ciúme divino e
isto levaria ao aparecimento de Ate, que traria a cegueira da razão, para ver
se a pessoa respeitava moira, ou seja, o destino que lhe cabia. Qualquer coisa
que passa dos limites, da moderação, do equilíbrio e que ofende os deuses ou
que representa a vontade do indivíduo para ultrapassar o que lhe cabe por
destino, pode ser o gatilho para que Éris traga a discórdia. Húbris não atinge
só homens, podendo atingir os deuses, que também sofrerão as consequências.
Olhem para a história do casamento para o qual Éris não foi convidada e tudo
ali e partir dali nos leva a refletir sobre húbris.
E isto tem alguma relação com a história
atual do Brasil?
Claro!
Eduardo Paes, como o, então, prefeito da muy heroica
e gloriosa cidade do Rio de Janeiro, achava que poderia fazer o que bem
quisesse usando os jogos olímpicos como desculpa. Deputados e senadores achavam
que poderiam ganhar muito com a promoção da Copa do Mundo, um pouco antes.
Políticos, partidos e empresários pensavam que poderiam ganhar muito usando
aqueles eventos esportivos como desculpa. Pessoas que eram contra (ou posavam
como sendo do contra) pensavam que poderiam destruir toda uma estrutura
política e angariar proveitos políticos e demais benesses junto aos eleitores,
sem que precisassem fazer muito a favor deles. Foi um jogo de interesses que, sejamos
sinceros, não começou ali com os diversos eventos esportivos. Tudo já vinha se
arrastando desde que os militares resolveram que não poderiam mais arcar com as
dívidas monumentais que eles mesmos haviam contraído a partir de 1964. O
endividamento do país envolvia centenas de bancos estrangeiros, então ficava
mais fácil transferir a conta para os civis. Os militares sabiam que os civis
brigariam entre si para ter acesso ao comando do país, assim como sabiam que
eles teriam dificuldade para lidar com todos os erros e excessos cometidos durante
o período militar. E tudo desaguou no atual governo presidencial aonde uma
pessoa (não importam os motivos e quem está por trás desta pessoa), está se
deixando levar por húbris. Nêmesis agirá (ou já age!) em algum momento e Ate pousará
(se já não pousou), conduzindo à cegueira e à loucura, para ver se a pessoa
volta ao equilíbrio. Se ela não voltar ao equilíbrio, ela será devorada por sua
própria loucura. E não se enganem, nenhuma das pessoas ao seu redor está menos
acometida por húbris. Todas estão! Inclusive as que foram afastadas ou se afastaram
do poder! Todos ultrapassaram seus limites e, por mais que posem de heróis, na
verdade estão apenas agindo como aves de rapina que almejam o lugar máximo ou
estar ao redor deste lugar máximo, porque se consideram mais poderosos e mais
capazes do que o resto do mundo que os cerca. O orgulho excessivo e a vaidade
excessiva os levarão ao mesmo caminho da perdição, não importa o quanto se
ajoelhem diante de algum altar. Eles plantaram a discórdia, deram vez e voz a
ela, escolheram a proposta que os levará a uma guerra e se acreditam invencíveis
em suas posições. Todos sofrem de húbris, e estão sob a mira de Nêmesis e com
Ate sobre suas cabeças. As Moiras não param de chamá-los de volta para os seus
destinos, mas a todo momento eles se sentem mais e mais atraídos pelo pomo de
ouro trazido por Éris que eles mesmos convidaram para cear com eles.
Esta tragédia grega não terá um fim alegre,
mas possui uma lição, com toda certeza.
Agora que o coro grego cantou a sua parte no
intervalo, arrumem-se neste anfiteatro porque a peça recomeçará em instantes.
Muitas surpresas nos aguardam até o fim desta tragicomédia. Espero que você
esteja entre os sobreviventes após o término dela. Nos veremos mais tarde!
A imagem acima é peça de divulgação do filme Advogado do Diabo. Não sei a autoria da arte, mas aparece a marca "ultrad.com.br" no canto direito superior. Na arte vemos os atores Al Pacino e Keanu Reeves.